Houve um tempo em que Teresina olhava para os seus rios sem pavor, como que encantada pelas águas, ainda que elas embalassem presságios e, aqui e acolá, cobrassem dos mais afoitos o peso da alma em gramas de carne. Os rios eram outros, é verdade, e vivíamos a dissipar os dias mágicos da juventude.
Por essa época, as coroas que surgiam no Parnaíba desde o fim de abril ou, mais tardar, com os primeiros ventos de maio apinhavam-se de banhistas esperançosos em afugentar o calor desumano que irremediavelmente nos chega pelo começo de agosto, mas que sempre mostrava os dentes com antecipação. Era o início dos anos 80 e o vigésimo século parecia rumar para o seu final sem maiores sobressaltos. O País seguia firme para a redemocratização depois de duas décadas de ditadura militar e uns malucos de cabelo comprido, que a galera brincava dizendo terem vindo de Woodstock a pé, falavam de uma tal ecologia, e a gente não entendia bem se era pra comer, cheirar ou apenas pra repetir e parecer galante na frente das meninas.
As palhoças enchiam o leito assoreado do rio na região central da cidade, da ponte metálica até a Prainha, frente ao Centro Administrativo. Ao largo do cais, um pouco abaixo de onde se encontra o Troca-troca, ficavam as melhores barracas, onde o metro de areia, ao abrigo do sol, era disputado pelo tanto que valia em lufadas de vento benfazejo, no desfrute de uma cerveja bem gelada, uma caipirinha ou mesmo da velha e boa cachaça pura com limão. O rio estava lá mesmo para refrescar o fogo que se acende por volta do meio-dia e faz a palha do babaçu crepitar como se fosse arder a qualquer momento. Só não pode é dar-se ao luxo de beber e nadar, pois não se deve esquecer que água não tem cabelo.
Era difícil passar no ônibus ou em outro transporte e não dar vontade de largar tudo e pular nas águas do rio. Foi numa dessas irresistíveis andanças que conheci o Negro Valter (na verdade, a gente pronunciava sem os dois “erres”, Nego Valte). Por esses dias, eu trabalhava na Lucaia e costumava, aos sábados, tomar umas cervejas pelas bandas do bairro São Pedro, na Prainha ou a caminho de casa, na zona Sul.
Ao primeiro copo que levei à boca, sabe-se lá o que move em profundo o interesse humano, olhei para o rio e avistei uma ilhazinha perdida, já próxima à margem de Timon, com bastante gente. Acho que, por um segundo, comparti os sentimentos dos argonautas e descobridores. Havia um barquinho que fazia a travessia e avistei alguns conhecidos embarcando como se estivessem indo àquela fantástica festa no céu (na qual “quem tem boca grande não entra”, lembra?). Então, deixei a cerveja por terminar e me inclui entre os passageiros da canoa do seu Noé, um negro risonho que nem mesmo a ausência dos quatro dentes dianteiros superiores poderia compuscar a nobreza e simpatia.
Em pouco tempo e à custa de valorosas remadas que Noé infligia e faziam a canoa balançar sobre o leito das águas barrentas e pesadas depois das chuvas, chegamos a uma espécie de paraíso aquático cercado por fina e branca areia. Uma rede de vôlei e uma turma que se dedicava ao jogo com o interesse típico da desportividade sem compromisso davam nome à coroa e à barraca: Voleibar. Mas, havia também quem jogasse futebol, empinasse papagaio ou apenas tomasse cerveja e zombasse infantilmente do calor (ih! Beú, nem me pega...). Ah! E havia também os festivais de música, os luaus e otras cositas más.
Apesar de todo mundo saber que o Nego Valte era boa praça e que o Voleibar era o local mais teresinense no rio Parnaíba, o primeiro Rock do Velho Monge, um festival feito somente para os frequentadores da nossa pequena ilha do tesouro, quase não aconteceu. Embora a ditadura estivesse com os dias contados e muitos já nem se dessem conta da sua existência, para realizar qualquer show era necessário que as letras das músicas a serem apresentadas passassem pela aprovação do Departamento de Censura da Polícia Federal. Já era sexta-feira e nenhuma providência nesse sentido havia sido tomada. Então, Nego Valte usou da sua influência, fazendo bravata: “Eu tenho um peixe lá dentro. Deixa comigo que eu levo lá e trago tudo assinado”. Dito e feito. O show foi um dos melhores que já rolou nas areias do Parnaíba. Depois a gente descobriu que o Nego Valte não tinha influência de coisa nenhuma na PF e que Peixe, na verdade, era o sobrenome de um cara que trabalhava lá. Valte conseguiu tudo mesmo foi na lábia, conversando e mostrando o quanto amava o rio e a sua terra.
Então, depois de hercúleo trabalho, ele se envolvia de uma malandragem episcopal e filosofava: “Voleibar não é mar, mas rola altas ondas”. Outras vezes, Valte ficava imoto, lançando fumo às nuvens, olhando as águas e a vida que passava mansa.
Nesse verão e em outros que viriam, pudemos viver nossa mesopotâmia sem alardes, levando para casa, nos bolsos dos calções folgados, na virilha e nas dobras da pele queimada pelo sol, ao final de sábados e domingos, um quinhão de areia que nos parecia mais valioso do que pó de ouro.
Éramos a cidade que desejávamos ser, sem invejar outras à beira-mar e suas praias, porque estávamos ao sabor das peripécias do momento, das emoções juvenis, das novidades e convivíamos com a urbe que nos acalentava e cobrava responsabilidades que somente agora percebemos urgentes.
Talvez um dia, o rio Parnaíba volte a ter saúde e a ser frequentado pelo povo que deveria resguardá-lo e, ainda tonto do que houvera, olhe para trás e perceba quanta gente boa ficou pelo curso tortuoso. Tomara que encontre Nego Valte e seu Noé ainda remando e sigam felizes margeando cidades e gentes. Até se encontrarem no delta e, junto com a primeira cruviana, num redemunho birrento, refaçam o caminho de volta, num ciclo eterno que, se fôssemos mais melancólicos, chamaríamos o melhor de nossas vidas.