VOZES do passado DA CIDADE
Olhar preso a fotografias em preto e branco aguçou imagens repletas de sons de tempos atrás... Final da década de 60, começo da década de 70. Calçadas da zona norte de Teresina, onde, nos finais de tarde, as famílias colocavam cadeiras de ferro com espaguete e depois do jantar, que era servido cedo, (ainda sem a invasão da televisão) conversavam até a hora de dormir, sobre política, futebol e amenidades. Dividindo a largueza das calçadas, a meninada da vizinhança cultivava saudáveis hábitos da infância, hoje abandonados e substituídos pela televisão, vídeo-games e internet. Reunidas sempre no mesmo horário, as crianças da vizinhança decidiam qual brincadeira daria início às atividades daquele dia: cantigas de roda (pai Francisco, Apareceu a margarida, Eu sou pobre-pobre-pobre, Bom barqueiro (dizia-se bombaquim), Teresinha de Jesus, Três laranjas menina, Quebra, quebra guabiraba quero ver quebrar...), balacondê, cancão (que era riscado com carvão nas calçadas e depois virou amarelinha), guerra-guerrou, pula-corda-de-cipó, o anel, a melancia, pega-pega, estátua, boca-de-forno e muitas outras que se perderam nas memórias. Após horas alegres de pura diversão, exaustas e felizes, as crianças se recolhiam, atendendo ao chamado dos pais. Elas retornavam ao aconchego dos lares (as crianças não ficavam fora de casa até muito tarde, nunca mais do que nove ou no máximo dez horas da noite nos dias de festa). Depois desse horário, (as famílias em suas casas), aos ouvidos mais sensíveis, ainda ecoavam nas ruas as risadas e as vozes de crianças e suas brincadeiras – o anel rodoooou-rodoooou em que mão ficou?, Boca-de-forno – Fooorno! – Jacarandá – dá! Se eu mandar? Vou! E se não for? – Apanha! Ares de cidade pequena e feliz. Mas, feliz mesmo dormia-se nos dias em que as primas mais velhas, assumiam o papel de contadoras de “histórias de trancoso” as quais sabiam “e inventavam” aos montes, com riqueza de ritmo, vocabulário, detalhes, canções, desde os contos de fadas, príncipes e princesas desafortunadas com final feliz, até as estórias mais intrincadas e de arrepiar os cabelos: - A casa cai! – Cai não!. – A casa cai! – Cai não![...], Eu já te disse que Dom ratinho morreu, Dona Garrincha chora, porta abre-e-fecha, vassoura varre[...], - “Mulher eu já vou! – Quando sair fecha a porta. – Ah! É pra levar a porta?[...].
Tudo era mágico no universo infantil daquele tempo. As amizades eram cultivadas no dia-a-dia, nas calçadas e no caminho da escola que se percorria à pés. Os grupos escolares funcionavam como extensão das famílias e ficavam pertinho de casa. As mães conheciam cada professor ou professora e vice-versa. Escola, naqueles dias, lugar de se aprender, se educar e não somente o trampolim para os concursos vestibulares. Estudava-se para a vida, como quer que ela fosse. Cultivava-se o respeito aos professores e aos mais velhos. Os colégios eram motivo de orgulho e a eles se defendiam como a alguém querido, escondendo-se as falhas e amando-se aos professores, aos amigos. Ensaiava-se durante meses para os desfiles das paradas de 7 de setembro, motivo de celebração do patriotismo então cultivado no dia-a-dia: Os taróis e tambores rufavam tarará-tum, tarará-tum, tarará-tarará-tarará, tum-tum, e a meninada marcava o passo acompanhando o som da banda da escola pelas ruas, de nariz empinado, com o peito inocente cheio de amor e orgulho pela pátria. Tudo era uma festa: antes e durante os ensaios e desfile. No ônibus, a caminho do desfile, entoavam-se os hinos patrióticos, alegremente: Criança feliz, feliz a cantar. Alegre embalar seu sonho infantil[...] Ouviram do Ipiranga às margens plácidas[...] Salve o torrão brasileiro, salve o nosso céu de puro anil[...] Em frente à tropa de alunos de cada escola, meninas vestidas em traje especial de cetim e botões dourados, faziam movimentos com varinhas enfeitadas de fitas coloridas. Algumas faziam malabarismos – eram as chamadas balizas, copiadas dos modelos europeus. Lembro-me bem de uma delas que chorava porque seu chapéu (estilo cartola, todo enfeitado de fios dourados) teimava em cair da sua cabeça. Mas, ao final, vi que uma professora atenciosa resolveu o problema, devolvendo o sorriso ao rosto da pequena baliza de traje azul. Na rotina escolar, hasteava-se o pavilhão nacional entoando os mesmos hinos à Pátria.
Nas ruas os vendedores ambulantes se tornavam conhecidos pelos “gritos de guerra” para chamar a clientela: “Cuscuz Ideal!” (e a meninada respondia: quem comer dele vai pro hospital!), “Picolé Amazonas – Pi - colé!”, “Kichuá!”, “Quem quer: Quebra-queeeixo!”( a tradição do ‘quebra-queixo’ ainda é conservada por um ambulante no centro da cidade, mas não é como antigamente, naquele tempo o doce era mesmo duro e como não se conseguia partí-lo, esticava-se e sempre restava que ele grudava nos dentes), “Olha o algodão doce!”, “Carvoeiro!”, “Alfinin!”(este último era vendido numa tábua repleta de furos, o doce era enrolado num papelote e enfiado num palito, em forma de pirulito - daí a velha expressão “mais furado do que tábua de pirulito”.) Além desses, ainda percorriam as ruas, compradores de garrafa que gritavam: garrafeeeiro, garrafa, litro e meia-garrafa – garrafeeeeiro!. E na vizinhança, quem tinha alguma garrafa em casa saia à porta para vender e ganhar uns trocados. Nas quitandas do bairro, os caderninhos de fiado faziam as vezes dos cartões de crédito e não se cobravam juros!
Ouviam-se muito aos programas de rádio, nos radinhos de pilha, nas calçadas, principalmente nos dias de transmissão dos jogos de futebol dos times locais, cuja rivalidade animava discussões e bate-papos: River e Flamengo. Nos rádios ressoavam as vozes dos locutores em eco: Rrriver (ver) (ver) (ver), Flamengo (go) (go) (go). As torcidas, às vezes em grupos familiares, se deslocavam ao estádio de futebol Lindolfo Monteiro, à pés, ida e volta.
As ruas eram pavimentadas com pedras do tipo “jacaré”, até que na década de 70 o governo começou a asfaltar. E foi um momento limítrofe para a “alardeada chegada do progresso”, os slogans do governo ressoavam na mídia: “Esse é um país que vai pra frente..ô, ô, ô, ô, ô! De uma gente amiga e tão contente! ô, ô, ô, ô! Esse é um país que vai pra frente! Povo unido de grande valor! É um país que canta, trabalha e se agiganta! É o país do nosso amooooor!”
O que acontecia no âmbito da política, (as atribulações do regime militar, as perseguições, a censura), as crianças da época, somente ficaram sabendo das histórias muito tempo depois... Havia um silêncio sobre esses assuntos! Minha mãe, contou-me que meu pai foi transferido para outro estado e que, “temendo perseguição à família em virtude dos seus escritos, ateou fogo a todos os seus papéis”. E olhe que ele nem era comunista ou revolucionário, ele era apenas mais um poeta na vida. Tratores nas ruas, caminhões transportando piche, “emlambrecando” tudo, quando uma criança brincando de pega-pega, foi desviar-se de um flagrante e caiu com os joelhos e mãos no chão coberto daquela calda de piche mole... Levantando-se assustada, mãos e joelhos negros (ela que era loura), desatou a chorar e correu para casa, para mostrar aos pais que, agoniados tentavam limpar o piche grudento, em vão! A irmã do garotinho, vendo-o sofrer naquela situação, simplificou tudo numa frase: Pai, eu não gosto desse tal de progresso! Ele só vem para trazer o mal...O pai aflito, meditou sobre a fala da filha e balançou a cabeça consentindo. Imagine-se o que se passou pela cabeça dele naquele momento (ele que não tinha a nossa inocência). Mas, os sons persistem: Naquele tempo, as visitas à porta, batiam palmas e diziam: - ó de casa! Logo aparecia alguém, (sem medo) para dar as boas vindas e oferecer cadeira para sentar. A conversa era animada por amenidades e regada a cafés. No tempo dos potes de barro, nas “bilheiras”, tomava-se água fria fervida e coada no pano de algodão. As donas de casa reservavam sempre um doce para as visitas, que eram constantes. Essas visitas chegavam sem avisar e eram bem vindas! Eram os amigos que se visitavam e vinham tomar um café e conversar, alegremente, as coisas de adultos (talvez política...) e das amizades.
Na minha casa falava-se de literatura, recitavam-se poemas, tomavam-se os tais cafés e soavam muitas risadas, principalmente quando a visita se tratava do poeta Oliveira Neto, que espalhava alegria e bom humor com suas trovas, que recitava de cor. Meu pai, às vezes, me chamava a declamar poemas que eu havia decorado com ele quando ainda era menor: de Abdias Neves – Quando sinto cantarem sobre as telhas, o ouro da luz e a voz da madrugada, vou ver morrer no céu as irisadas, pequeninas e fúlgidas centelhas. Ainda não despertaram as abelhas, para a festa das ramas enfloradas. Pássaros dormem, abertas nas estradas, rosas pompeiam em pétalas vermelhas [...]. E eu declamava às pressas, envergonhada e pensando em terminar o mais rápido possível. Daí dizerem, os de casa, às gargalhadas, que eu parecia um “carretel solto”. Os adultos sempre aplaudiam e incentivavam. Oliveira Neto era mesmo barulhento (dava gargalhadas sonoras e declamava sem parar). Era meu poeta preferido da infância (tenho a coleção de livros dele, todas com dedicatória). Além do mais, ele dedicou um poema para mim, fui eu mesma quem o escolheu, apesar do meu pai achar que se tratava de um poema triste para ser dedicado a uma criança. Mas eu estava determinada, e fiquei muito orgulhosa com a dedicatória.
Nas festas juninas, os arraiás eram animados e traziam as quadrilhas dentro das tradições matutas: “Alavantú, anarriê!”( roupas coloridas, cabelos de tranças e pinturas exageradas), com direito a casamento, ao ritual de saltar fogueira, a acender fogos e assar comidas na fogueira: O som da radiola soava alto: “Olha pro céu meu amô, vê como ele tá lindo! Olha pra tanto balão multicor, que pelo céu vai subindo.” O gritador de quadrilha que animava “prá valê”, era um rapaz chamado de Americano, alcunha recebida em função de ser alto, louro e de olhos claros. Tempos depois, esse mesmo rapaz, inteligente que era, tornou-se médico e entrou na política. Também ele era uma dessas “figuras sonoras”, alegre, cuja voz sempre ecoava pelas ruas das redondezas.
Mas, com a chegada do tal asfalto, também chegou a velocidade dos veículos, tempos de se ter cuidado com o trânsito. Diminuía, assim, o espaço de liberdade das crianças. Começavam a ser ouvidos os barulhos dos carros que ainda existiam em pouquíssimo número: No quarteirão da minha casa, do lado esquerdo, um Jeep azul, lustroso, bem cuidado do meu tio e vizinho, Mestre Cantídio e do outro lado, outro carro do vizinho que trabalhava no Dnocs, seu Melo. Era uma caminhonete que apelidavam de “fubica”. Um quarteirão depois, tinha outro Jeep, da Dona Libanha e do seu Pessoa, e eram só esses. Quando aparecia outro carro, era de gente estranha, não era do bairro. Normalmente, andava-se a pés e sem medo!
Quando os carros de lixo começaram a fazer as coletas na rua, a garotada inventou um grito que importunava os coitados dos garis que passavam pendurados: “- Macaco-in, cuim, cuim”! O mesmo acontecia com caminhões com material de construção: “Macaco-in, cuim, cuim”. Acho que se referiam ao fato dos garís ficarem pendurados, como macacos”.
No dias de chuva, barquinhos de papel desciam na correnteza, não sem seus alegres barqueiros correndo atrás, tentando acompanhá-los, até se desmancharem... Eu mesmo brinquei com meu irmãozinho menor na calçada larga em frente à minha casa e ao longo de todo o quarteirão. Nunca além dele.
As vizinhas trocavam pequenos favores, como uma xícara de açúcar, duas colheres de pó de café, ou qualquer coisinha que faltasse numa emergência cotidiana. E era um prazer atender e ter em casa o suficiente para “acudir” a vizinha. Às vezes, por cima do muro, gritavam “Ô Vizinha! Me empresta uma xícara de açúcar?” Ao que a outra respondia: “Já vai!” E ao entregar diziam: “sempre que precisar e eu tiver, disponha!”. Era uma socialização espontânea e verdadeira.
A vida era mais saudável, andava-se muito a pés: ao centro, à escola, aos passeios. Ia-se, voltava-se e o tempo era suficiente! Sem pressa! Na passagem cumprimentavam-se aos “donos das calçadas”: Boa tarde seu João! Boa tarde seu Elias! E visitavam-se avós, tios, parentes, amigos e ninguém reclamava da falta de tempo! Esse tempo que hoje todos dizem não ter. O tempo que virou dinheiro, perdeu sua dignidade, sua essência valorosa. E “as vozes daquele tempo”, parodiando Manuel Bandeira, não se ouvem mais! As calçadas estão muito estreitas. Os muros estão muito altos. Não sabemos os nomes dos vizinhos, não temos quem nos “acuda” e nem somos chamados a acudir. Os sons dos aparelhos de televisão estão muito altos. Não dá mais para saber se existem crianças morando perto. Elas, provavelmente, estão navegando, imóveis em frente aos monitores de computador, fingindo que estão “aprendendo o mundo” e que estão “vivendo a vida”. Suas vozes estão abafadas nos teclados e transformadas em dígitos inaudíveis ou talvez descansando em frente ao aparelho de televisão ou ainda sendo tragadas por outras parafernálias eletrônicas irresistivelmente consumidas. A vida de criança, propriamente, foi reduzida: de um salto, de um tempo acelerado pelo “tarefismo escolar” e alguns excessos do mundo da informatização, logo serão adolescentes e adultos, sem infância... Mas, são novos tempos! Escolhas foram feitas! Restaram somente alguns ecos perdidos e, casualmente, reencontrados naquelas fotos em preto e branco.
Lilásia Chaves de Arêa Leão Reinaldo